terça-feira, 26 de novembro de 2019




A MAIS BELA DECLARAÇÃO DE AMOR À LÍNGUA PORTUGUESA *


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       O ter tocado nos pés de Cristo não é desculpa para defeitos de pontuação.
      Se um homem escreve bem só quando está bêbado, dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso, responderei: o que é o seu fígado? é uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto.

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      Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o  desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintática, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
      Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
      Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez, numa seleta, o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. « Fabricou Salomão um palácio... » E fui lendo até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não
- a saudade da infância, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez, aquela grande certeza sinfónica.
     Não tenho sentimento nenhum,  político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
     Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

Pág. 225, 226 e 227

Fernando Pessoa
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Versão Integral
Edição: Richard Zenith
Assírio & Alvim
Porto Editora, 2014

* O título é meu, pobre alma que humildemente sangra lágrimas de felicidade perante grandeza tamanha.




João Andarilho

segunda-feira, 25 de novembro de 2019




PREC


PROCESSO REVOLUCIONÁRIO EM CURSO, foi a designação por que ficou conhecido o período revolucionário onde o poder popular governou o país, literalmente. Durou 19 meses e acabou traído em 25 de Novembro de 1975 onde, um golpe contra-revolucionário liderado por Jaime Neves e apoiado pela igreja, pelos partidos de direita e pela sociedade mais retrógrada e afecta ao antigo regime, desfez a esperança de mudança efectiva do paradigma de atraso e exploração de um povo.

O MFA, Movimento das Forças Armadas, foi o garante da vontade popular durante este período, mediando os conflitos de classe que então se verificaram, nomeadamente no Alentejo, onde o povo dorido e explorado pelos agrários e grandes agrários, que durante os 48 anos que durou o regime fascista os exploraram duramente. Gente que trabalhava duramente  e que era espezinhada e sem direitos, desde o sair do dia até ao pôr do sol a troco de baixíssimos salários, naquelas fazendas a perder de vista, naquelas terras em que na sua maioria nada se produzia.
O MFA fizera ruir os alicerces da ditadura fascista, competia-lhe o cumprimento do programa do MFA, garantido a defesa da revolução e o exercício do governo do país.

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REFORMA AGRÁRIA (Decreto-Lei nº 203-C/75, de 15-04)


1. O Conselho da Revolução apreciou a situação da economia na actual fase do processo revolucionário português, verificando, designadamente, a deficiente utilização da capacidade produtiva do País em recursos humanos e materiais, acompanhada da redução do nível de investimento, o crescente desequilíbrio da balança de pagamentos e a persistência da pressão inflacionista, embora em atenuação nos últimos meses. 

Tal situação é consequência natural do desenvolvimento de um processo revolucionário que tem vindo a desmantelar o poder do capital monopolista, agravada pela reacção dos seus detentores, que a todo o custo têm tentado impedir a perda dos seus privilégios. 

Vivemos, assim, uma crise largamente resultante não só da herança das estruturas económicas do fascismo e colonialismo, como da desagregação do sistema capitalista em Portugal. É agora necessário e imperioso reconstruir a economia por uma via de transição para o socialismo. Está em causa consolidar os primeiros passos concretos da nossa revolução socialista e realizar novos avanços nessa direcção, atendendo a dois objectivos primordiais: 

a) Garantir a independência nacional no arranque para um socialismo verdadeiramente português, evitando situações extremas de crise económica que nos coloquem em reforçadas e delicadas dependências externas; 

b) Identificar a dinâmica da classe trabalhadora com um projecto de construção de socialismo. 

2. O Conselho da Revolução, ao analisar os trabalhos em curso no âmbito do Conselho Económico relativos à preparação dos programas de medidas económicas de emergência, definiu as seguintes orientações gerais: 

a) É necessário que os trabalhadores sintam que a economia já não lhes é estranha, ou seja, que a construção socialista da economia é tarefa deles e para eles. Isto implica a afirmação clara do princípio do contrôle organizado da produção pelos trabalhadores para objectivos de produção e eficiência, coordenados pelos órgãos centrais de planeamento, segundo esquemas a definir com brevidade; 

b) É indispensável estabelecer uma limitação dos consumos a partir de um princípio de máximo nacional de rendimento disponível, extensível aos titulares de todos os rendimentos, e não apenas ao trabalho por conta de outrem; 

c) Igualmente se torna indispensável garantir a contenção dos preços de bens essenciais, sobretudo alimentares; 

d) Deverão ser completados os passos já dados no sentido da nacionalização dos sectores básicos da actividade económica (indústria, transportes e comunicações); 

e) Deverá ser aplicado um programa progressivo de reforma agrária, integrado num todo coerente de medidas de política económica; 

f) Verificadas as condições anteriores, será legítimo fazer apelo à mobilização dos trabalhadores para um emprego produtivo, mobilização necessária à construção da sociedade desejada pelo povo português. 

3. Mostrando-se necessário dotar o Governo, através do Conselho Económico, de um processo expedito de dar execução às medidas a inserir nos programas de emergência acima referidos; 

Usando da faculdade conferida pelo artigo 3.º, n.º 1, 3.º, da Lei Constitucional n.º 6/75, de 26 de Março, o Governo decreta e eu promulgo, para valer como lei, o seguinte: 

Artigo único. São aprovadas as bases gerais dos programas de medidas económicas de emergência publicados em anexo ao presente decreto-lei. 

Visto e aprovado em Conselho de Ministros. - Vasco dos Santos Gonçalves - Mário Luís da Silva Murteira - Fernando Oliveira Baptista - João Cardona Gomes Cravinho - Álvaro Augusto Veiga de Oliveira. 

Promulgado em 15 de Abril de 1975.

Publique-se.

O Presidente da República, FRANCISCO DA COSTA GOMES.

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O povo empenhava-se na conquista de direitos e liberdades. Juntos, povo e MFA, a Aliança Povo/MFA, estavam imbuídos do propósito da construção de uma sociedade mais justa e iniciavam, assim, o processo revolucionário.
Eram dias de liberdade, de trasbordante felicidade. De excessos, também, que sim, também os houve tal era o sentimento de liberdade. Para isso lá estava o MFA e os seus militares vigilantes. Mas de excessos e de grosseira tentativa de contrariar o processo revolucionário pode-se com toda a propriedade falar da reacção dos agrários, que não gostaram de ver ocupadas as terras improdutivas, suas propriedades, pelos camponeses, que criaram as Unidades Colectivas de Produção, as UCP´s.

A Terra a Quem a Trabalha! Mulheres e homens, gentes de todas as idades tomaram caminho em direcção às terras incultas, cobertas de mato e de tojo, secas e enrijadas à espera de serem desbravadas e cultivadas. Esperavam pelos braços e mãos daqueles que as arrancassem ao martírio infernal a que foram lançadas.

Tomavam-nas, àquelas terras, não as roubavam! Porque as terras não se roubam, fazem parte da natureza. Pertencem a quem delas precise para as trabalhar, pertencem à natureza.

Assim se desenrolava uma intensa luta de classes, de um lado os agrários e latifundiários, que queriam continuar com a posse da terra improdutiva, do outro o povo, os trabalhadores, os camponeses, que queriam uma reforma agrária regulada por lei, que garantisse a formação de cooperativas e de unidades colectivas de produção agrícola. Uma coisa era certa, para os trabalhadores, para os agricultores só havia uma certeza: defender a reforma agrária era defender a economia do país e a revolução de 25 de Abril.
" O tempo da terra alentejana ser regada com sangue dos trabalhadores acabou e, se tentarem realizar essa acção, serão impedidos por uma força por mim comandada, com todas as armas para vocês apontadas." Palavras ditas pelo oficial delegado do MFA em terras de Montemor-o-Novo, no momento em que o senhor da terra, homem de poder e de domínio, não aceitava que os assalariados tomassem as terras e, em ameaça, ele e os seus comparsas, aprontavam-se a disparar e a matar, se preciso fosse.

Com a publicação da Lei da Reforma Agrária, aos trabalhadores e às instituições de apoio à reforma agrária cabia aplicá-la; ao MFA, defendê-la.

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UCP (Unidade Colectiva de Produção)

Chegados às terras secas e sedentas, logo pela madrugada, escolhiam o nome da sua UCP.  Faziam o levantamento das terras a trabalhar, das máquinas e alfaias disponíveis, do gado, das culturas a semear, do pessoal que era necessário para o seu cultivo. Distribuíam-se tarefas, caiavam-se paredes, erguiam-se as divisões: aqui funcionava o escritório, ali o armazém, no outro lado o refeitório. Construíam-se estábulos, criavam-se espaços para acomodar os animais e lançavam-se projectos para aumentar o número de cabeças. A alegria era o resultado da esperança e confiança no futuro e este estava nas suas mãos!
Todos tomavam nota do que tinham a fazer e, no dia seguinte, partiam para realizar as suas tarefas.

Quando havia problemas de organização, lá estava o Instituto da Reorganização Agrária para apoiar, ajudando a pôr as unidades de produção agrícolas a funcionar. Semeava-se a terra, promovia-se a venda  de produtos, organizava-se a contabilidade, pagavam-se os salários, cumpriam-se as obrigações fiscais, garantia-se a segurança social. 
Foram criados apoios sociais, organizaram-se creches para os filhos dos trabalhadores. Se era necessário garantir cuidados de saúde, construía-se um posto médico. Se era essencial organizar cursos de alfabetização, tal era o grau de iliteracia no país, instruíam-se professores que os ministravam. Foram criados centros de apoio à terceira idade. Se era necessário ter mais braços para trabalhar na época das colheitas, organizava-se a solidariedade dos trabalhadores das fábricas e das cidades.
De Lisboa, do Porto, de muitas zonas do país, seguiam, bancários, empregados de escritórios, operários, mulheres,  homens, jovens e todos iam cooperar na apanha do tomate, da fruta, dos vegetais. Assim se desenrolava a reforma agrária no nosso Alentejo.
Com esta gesta, os assalariados agrícolas de todo o Alentejo, construíram a reforma agrária e o que foi construído pelo povo trabalhador ficará na memória de todos os que conheceram a revolução agrária no Alentejo.
É um legado que ficará inscrito nos anais da História da Revolução do 25 de Abril de 1974.

Fonte: "Memória e Vida em Tempos de Abril" de Maria José Maurício




domingo, 17 de novembro de 2019




TRIANGULAÇÃO



Aquela fórmula mágica estilo de jogo da Laranja Mecânica ou do Barcelona, em que há sempre dois jogadores para receber a bola de quem a tem, envolvendo o adversário no seu meio campo até entrar redondinha nas redes sem hipótese de defesa.

Mas há outras triangulações na vida e estas de que quero falar têm a ver com os marcos geodésicos de Portugal que permite que se façam triangulações com o objectivo claro, não de dar destino à redondinha, mas de se calcular milimetricamente coordenadas de localização de um determinado ponto ou vértice geodésico.
Estes marcos são pequenas construções, geralmente em betão, em forma cilíndrica ou piramidal, popularmente conhecidas por "talefes", que têm como função representar pontos de referência no território (daí a sua implementação em locais altos e destacados), com visão para outros marcos, permitindo a obtenção de coordenadas geográficas com elevada precisão. 



O Centro Geodésico de Portugal, situa-se na serra da Melriça, no concelho de Vila de Rei, erguido em 1802, a uma altitude de 592 metros, latitude 39º, longitude 8º 8´W e tem 9,10 m de altura e 3,25 m de base e faz parte, como sinal geodésico das cadeias fundamentais.

É exactamente aqui o centro de Portugal!

Deste marco geodésico tem-se uma visão impressionante de várias localidades, como Mação a SE, Cardigos a E,  Serra da Estrela a NE, Castanheira de Pêra a N, Figueiró dos Vinhos a NO, Fátima a Oeste, Vila de Rei a SO e Abrantes a S.

Pena não ter tido oportunidade de observar tudo isto uma vez que havia um nevoeiro bastante cerrado que o não permitiu.

Interessante. Como exercício de cidadania, vale a pena ir ao terreno explorar as centenas de marcos geodésicos que se espalham pelo nosso território. É um desafio...

Boas triangulações e Bola na rede!


João Topógrafo




sábado, 9 de novembro de 2019


BERLENGA

Um conhecimento antigo diz que, quando se vislumbra o arquipélago da Berlenga de forma nítida, desde Sintra, Ericeira, Santa Cruz ou Nazaré, significa que vai chover.  Isto tem a ver com a percentagem de humidade na atmosfera, que actua como uma lente permitindo a nitidez.
Porém, não deve ser assim, segundo entendidos da zona: devido à proximidade do mar a Berlenga, Peniche e Zona Oeste, é bastante húmida durante todo o ano ( à  volta de 80% ). Humidade que se não dissipa derivado a uma barreira natural constituída pela Serra de Montejunto e Estrela, o que dificulta a visibilidade do arquipélago. Quando raramente sucede a percentagem de humidade descer para níveis próximos do 0%, então, de um ponto alto como Montejunto, é  possível observar a Berlenga e até a barra de Lisboa. Concluindo, é  ausência de humidade ou a sua baixa percentagem na atmosfera que permite uma boa visibilidade e não a "aparição" de uma lente provocada pela humidade na atmosfera.



A última vez que me foi proporcionada uma visita à ilha, a coisa não correu a 100%. Não porque não valesse a pena a visita à ilha,  que é fabulosa, mas porque os meus cristais ficam desorientados com as condições do mar e dá- me para soltar lastro .
De resto, não há resto, só vontade de visitar a Região Oeste e voltar.

João Andarilho 

sexta-feira, 8 de novembro de 2019




TRUMPAS


Como muita gente reconhece, o presidente de uma grande potência, militar, económica, científica e muitos etecéteras deste planeta, é conhecido pelo nome idiota de Trump. Motivo de muita gargalhada mas também de muito sofrimento pelo mundo à custa de uma miríade de decisões criminosas.
O homem é uma aberração da natureza na minha subjectivíssima opinião, conotado com a mais reacionária, intolerante, racista e xenófoba franja da sociedade ianque.
Ao caminhar por uma movimentada artéria da nossa capital dou de caras com uma cena absolutamente inesperada, por original e que me deu um gozo de rir às gargalhas. Tive que me conter...
Um indíviduo do sexo masculino, que nada me pareceu ser um pedinte profissional, antes um necessitado de uns cobres para uma emergência inadiável, postado na posição de indigente à beira do passeio, tendo colocado à frente dos pés um pequeno cartaz com a seguinte afirmação: "TRUMP FUCK". Estendia uma espécie de chapéu basco, na desesperada tentativa de ser apiedado por gente que ignorasse o dito do cartaz e fartamente por aqueles que, como eu, entendia perfeitamente o objectivo que o levou a este pedir tão original e tão carregado de ironia e significado.
Facto é que o chapéu, àquela hora, se mostrava bastante reluzente e pesado com a quantidade de moedas que amealhava.
Para este curioso cidadão do mundo, este cartaz terá sido, pela originalidade do dito, ideia bem pensada e melhor executada. 
Diria mesmo, conseguir a sobrevivência à custa da figura ridícula de um ser absolutamente abominável...

FUCK TRUMP, respondi-lhe eu, ao que ele replicou: "FUCK TRUMP!".



Fantástico meu caro Watson.

João Andarilho

  SÃO JOÃO   "23.6 À meia noite de hoje (ontem) acendem-se os fogos. A multidão reúne-se em redor das altas fogueiras. Nesta noite limp...