quinta-feira, 29 de novembro de 2018



1975


" Não, a metrópole não pode ser como hoje a vimos. A prova de que Portugal não é um país pequeno está no mapa que mostrava quanto o império apanhava da Europa. Um império tão grande como daqui até à Russia não pode ter uma metrópole com ruas onde mal cabe um carro, não pode ter pessoas tristes e feias, nem velhos desdentados nas janelas tão sem serventia, que nem para a morte têm interesse. Lá os velhos tinham dentes postiços muito brancos e andavam de um lado para o outro com chapéu na cabeça e os fatos dos trópicos engomados. Quando o pai via os velhos  a comer marisco no Restinga dizia, aqui até os velhos fintavam a morte. O pai sabia o que dizia, tinha ido para África para fintar a pobreza, em África fintava-se tudo, a morte, a pobreza, o frio e até a maldade, dizia-nos o pai. Aqui há que sobre para toda a gente, não precisamos de arrancar os olhos uns aos outros por causa de uma sardinha".




Eu, angolano me confesso. Em Julho de 1975, quando aportei a este rectângulo do extremo da Europa, nos meus frescos doze anos, experienciei exactamente este mesmo sentimento. Senti-me perdido numa terra estranha, com gente estranha, feia e mulheres com bigodes, vestidas de luto. Fiquei confuso com tanto acanhamento e conservadorismo cheio de preconceitos. Fui carimbado de "retornado", eu nado em Angola, nunca cá tinha vivido. As gentes eram estranhas, o clima era frio e o povo pobre em todos os sentidos. Era um país atrasado e eu logo percepcionei tudo isso apesar da tenra idade. Tinha abandonado a minha terra, grande, imensa, desenvolvida, aberta e sem preconceitos. As pessoas eram felizes, as mulheres belas, as míudas nas suas mini-saias até ao cotovelo, mostravam toda a sua beleza e sensualidade nas festas das garagens, dançando, bebendo, namorando e fumando um charro. Estávamos nos anos sessenta e nunca houve Maio de 68 porque as pessoas eram livres e viviam bem. A guerra colonial era uma coisa que passava ao lado e de vez em quando lá víamos controlos da PIDE, em que pediam a identificação aos pretos mas deixavam de fora os brancos "Esquisito pensava eu, porquê só aos pretos?". Quando sentia a presença daqueles esbirros, instintivamente os denunciava aos meus amigos que tinham a pele diferente da minha e eles lá voltavam para trás. La vita è bella, minha querida e saudosa Luanda, capital de um território imenso, catorze vezes e meia maior que a metrópole.


João "O Retornado"



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