sexta-feira, 25 de outubro de 2019


SOU-ME

《Meditei hoje, num intervalo de sentir, na forma de prosa de que uso. Em verdade, como escrevo? Tive, como muitos têm tido a vontade pervertida de querer ter um sistema e uma norma. É certo que escrevi antes da norma e do sistema; nisso, porém, não sou diferente dos outros. 
Analisando- me à tarde, descubro que o meu sistema de estilo assenta em dois princípios, e imediatamente, e à boa maneira dos bons clássicos, erijo esses dois princípios em fundamentos gerais de todo estilo: dizer o que se sente exactamente com se sente - claramente, se é claro; obscuramente, se é obscuro; confusamente se é confuso -; compreender que a gramática é um instrumento, e não uma lei. 
Suponhamos que vejo diante de nós uma rapariga de modos masculinos. Um ente humano vulgar dirá dela " Aquela rapariga parece um rapaz". Um outro ente humano vulgar, já mais próximo da consciência de que falar é dizer, dirá dela,  "Aquela rapariga é um rapaz". Outro ainda, igualmente consciente dos deveres da expressão, mas ainda animado do afecto da concisão, que é a luxúria do pensamento, dirá dela, "Aquele rapaz". Eu direi, "Aquela rapaz", violando a mais elementar das regras da gramática, que manda que haja concordância de género, como de número, entre a voz substantiva e a adjectiva. E terei dito bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza, da norma, e da quotidianidade.
Não terei falado: terei dito. 
A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém, o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente, e não para, como o comum dos animais homens, o ver as escuras. Se quiser dizer que existo, direi "Sou". Se quiser dizer que existo como alma separada, direi "Sou eu".  Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesma se dirige e forma, que exerce junto de si mesma a função divina de se criar, como hei-de empregar o verbo "ser" senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente  supremo, direi "Sou-me". Terei dito uma filosofia em duas palavras pequenas. Que preferível não é isto a não dizer nada em quarenta frases? Que mais se pode exigir da filosofia e da dicção?
Obedeça à gramática quem não sabe pensar o que sente. Sirva- se dela quem sabe mandar nas suas expressões. Conta- se de Segismundo, Rei de Roma, que, tendo, num discurso público, cometido um erro de gramática, respondeu a quem lho apontou, " Sou Rei de Roma, e acima da gramática". E a história narra que ficou sendo conhecido nela como Segismundo " supergrammaticam". Maravilhoso símbolo! Cada homem que sabe dizer o que diz é, em seu modo, Rei de Roma. O título não é mau, e à alma é ser- se》

Livro do Desassossego
Fernando Pessoa

sábado, 5 de outubro de 2019



EM BRUTO



Sexta, 04-10-2019, pelas 22:30 horas, principiou uma noite de revisitação. No caso e por baixo das arcadas do MUSICBOX, foi bom reviver ÚRIA, num espectáculo PésDeRoqueEnRole, com casa cheia! Que noite, que ambiente e que performance deste cantautor nascido em terras de viriato, deste Tondelense que magistralmente nos saboreia, na sua lírica, com os seus trocadilhos linguísticos e jogos de palavras, em citações e metáforas, provando um domínio superior da nossa língua portuguesa.


"O Conceito de Lírica, do latim lyrĭcus, é um género literário no qual o autor exprime os seus sentimentos e propõe-se a despertar sentimentos ao leitor ou ouvinte. A lírica tende a expressar-se em verso, apropriadas para o canto."

Faz-me lembrar o incomparável escritor moçambicano, Mia Couto, mestre na arte de desconstruir a língua portuguesa e de pintá-la com pinceladas muito bem africanas, dando um colorido impressionante ao nosso património linguístico.

Mas no MUSICBOX, a arte foi outra. Acompanhado da sua banda (Jónatas Pires - guitarras/voz; Miguel Ferreira - teclados/percussão/guitarra; António Quintino - baixo/voz; Tiago Ramos - bateria/coros), deixou-nos pérolas do que de mais rock ´n roll existe no seu repertório, misturadas com canções e baladas bem conhecidas dos seus êxitos mais recentes.



À pergunta: "não sente que há um interesse cada vez maior na sua música?" respondeu: "A simples noção de que não estou a estagnar pode ser traduzido na noção de que estou a crescer. Hoje em dia não conquistar públicos novos, faz com que os músicos sejam esquecidos ou preteridos por uma novidade qualquer. Mas tenho uma consciência humilde que me faz estar sempre com um olho aberto para perceber se estou a resvalar. Por outro lado, também é verdade que não faço músicas para um público abrangente. Às vezes gosto mesmo de ser recôndito nos meus objectivos".

Foi um concerto surpreendente, desta vez com banda, explosivo, e pode-se dizer que o mesmo sucede quando actua a solo, em ambiente intimista e num mano-a-mano com o público. 
Assente em canções de "O Grande Medo do Pequeno Mundo" mas que evoca temas incontornáveis de outros seus trabalhos, como "Teimoso", "Não Arrastes o Meu Caixão" ou "Barbarella e Barba Rasa", a par dos mais recentes "Espalha Brasas", "Em caso de Fogo" ou "Lenço Enxuto".





Consciente que não pode "resvalar", é certo que iremos ter muito Úria por muito tempo no nosso panorama musical e tanto que faz falta quando nos faltar.

"Já não caibo numa casa onde o espaço é todo meu, não são obras que me salvam, eu só sei crescer ..." de "É preciso que eu diminua".


https://youtu.be/olb1mwyq_Co


Teimoso

Um gigante neste pequeno mundo.

João Lírico







  SÃO JOÃO   "23.6 À meia noite de hoje (ontem) acendem-se os fogos. A multidão reúne-se em redor das altas fogueiras. Nesta noite limp...