sábado, 23 de setembro de 2023

 

DESPERTAR *

"Assalta-me a visão de meu corpo nu e estendido sobre uma mesa de necrotério. Peles murchas e coladas a um esqueleto, um ventre sumido entre as cadeiras... O suicídio de uma mulher quase velha, que coisa repugnante e inútil! Minha vida por acaso já não é o começo da morte? Morrer para fugir; que novas decepções? Que novas dores? Há alguns anos talvez tivesse sido razoável destruir, num só impulso de rebeldia, todas as forças acumuladas dentro de mim para não as ver a consumirem-se, inactivas. Porém, o destino implacável roubou-me até o direito de procurar a morte; foi-me encurralando lenta, insensivelmente, numa velhice sem fervores, sem lembranças... sem passado."


"Aturdida, levanto a cabeça. Entrevejo o rosto vermelho e murcho de um estranho. Em seguida afasto-me violentamente, porque reconheço meu marido. Faz anos que olhava para ele sem vê-lo. Que velho me parece de repente! É possível que seja eu a companheira deste homem maduro? Lembro, no entanto, que tínhamos a mesma idade quando nos casámos."


"Daniel pega-me pelo braço e começa a andar com a maior naturalidade. Parece não ter dado importância alguma ao incidente. Lembro da noite do nosso casamento... Ele, por sua vez, finge agora uma absoluta ignorância da minha dor. (...) Sigo-o para levar a cabo uma infinidade de pequenos afazeres, para cumprir uma infinidade de frivolidades amenas; para chorar por hábito e sorrir por dever. Sigo-o para viver correctamente, para morrer correctamente alguma dia."


Maria L. Bombal in A Última Névoa 

* Título da minha autoria 

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