quinta-feira, 28 de novembro de 2024

 

DEGUSTAÇÃO


Pintura de autor

Tento não olhar para o rectângulo que debita poluição visual. De raspão vejo as mesmas figuras e figurões de sempre e sempre a toda a hora debitados. Concentro-me o mais que posso no repasto que me foi servido para degustação. Bom proveito para mim, Andarilho.

João Andarilho


quarta-feira, 27 de novembro de 2024

 

LISBOA MENINA E MOÇA



Por razões várias, há bastante tempo que não surgia oportunidade de fazer turismo na minha cidade de Lisboa. Assim sendo e a oportunidade surgindo, andarilhei pela baixa da cidade, sob abençoada chuva outonal, embicando direito à magnífica Praça do Comércio, vulgo Terreiro do Paço, prosseguindo no percurso ribeirinho até ao cais de embarque de Santa Apolónia e subindo por Alfama acima em direção às escadinhas de São Crispim de boa memória. De volta à Praça D. Pedro IV , vulgo Praça do Rossio, mentalmente fiz uma análise rápida à minha caminhada e ao que dela pude concluir. E a conclusão é necessariamente rápida porque despertou-me para a realidade actual da minha cidade:

Destaco uma degradação geral, quer em termos de limpeza e asseio quer em termos urbanísticos, nomeadamente, as ruas com o asfalto degradado e os passeios mal calcetados, as fachadas sujas e cheias de grafitis. A contribuir para a degradação a quantidade absolutamente esmagadora de um meio de transporte que terá vindo para ficar (espero que desapareça), os chamados tuc-tuc, importados de orientais paragens, certamente acompanhando a horda incomensurável de turistas que demanda a nossa capital. Em Alfama, constatei existirem, ainda, moradores originais do bairro, mas que, aos poucos, a criminosa legislação que permitiu a criação de AL e a expulsão dos seus moradores, veio promover a sua descaracterização e apagamento progressivo das suas tradições, assistindo-se à sua tomada por gente estranha, de paragens estranhas, de baixa formação e que só arranha, por necessidade, a língua de Camões.  






Dizem certas pessoas no alto da sua sabedoria e poder discricionário que vivemos num tempo de globalização e de direitos e direitos das minorias e outras patetices para aqui e para acolá. É uma tal sociedade "woke", que para mim mais nada é que uma sociedade oca, sem valores e permissiva ao absurdo e estupidez. Como é óbvio, uma cidade é o espelho da sociedade que nela habita, constatando assim que Lisboa está doente e precisa urgentemente de cura e de outras políticas. 




Posto isto, tristemente levo o coração pesado e a alma amargurada pelo que vi e senti,  lamentando o estado a que isto chegou, não tanto por mim mas pelas gerações vindouras.


João Andarilho.

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

 A COR DA REVOLUÇÃO 




Celeste Caeiro, assim se chamava a Senhora que deu cor à Revolução.

Faleceu hoje a Senhora Celeste, florista e pessoa simples que, na hora certa, deu cor à Revolução e fez florir a esperança depositada no coração do povo português, naquele 25 de Abril de 74. O seu gesto, genuíno, marcou, de forma indelével, um dos dias mais simbólicos da história deste país.

A minha singela homenagem a esta cidadã que agora nos deixou.

João Andarilho 

 

O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO 




Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.
De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!
Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.


"O Operário em Construção" (Vinícius de Moraes. Rio de Janeiro, 1959)

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