O SONO
«... o sono é das derradeiras experiências em que nos abandonamos, conscientemente ou não, à assistência de terceiros. Por mais solitário e privado que pareça, ainda não foi separado de um rendilhado inter-humano de assistência e confiança mútua, por mais quebradas que estejam estas associações. É também uma libertação periódica da individuação - um desembaraçar nocturno do emaranhado mal urdido das subjectividades superficiais que habitamos e gerimos durante o dia. Na despersonalização da sonolência, quem dorme vive num mundo em comum, numa dramatização partilhada do retirar da nulidade e desperdício da práxis 24/7. Porém, apesar de todos os modos por que o sono não pode ser explorado nem assimiladado, dificilmente constitui um enclave na ordem global vigente. O sono sempre foi poroso, banhado pelos fluxos da actividade de vigília, ainda que hoje esteja mais exposto do que nunca aos assaltos que o corroem e diminuem. Apesar destas degradações, o sono é a recorrência nas nossas vidas de uma espera, de uma pausa. Afirma a necessidade de adiar, e o resgate ou recomeço diferido do que quer que tenha sido adiado. O sono é uma remissão, um libertar da "permanente continuidade" de todas as linhas que nos emaranham na vigília. Parece demasiado evidente dizer que o sono exige um afastamento periódico de redes e aparelhos para entrar num estado de inactividade e inutilidade. É uma forma de tempo que nos leva a outro lado, que não o que possuímos ou aquilo que nos dizem que precisamos.
Na minha opinião, o sono moderno inclui o intervalo antes do sono - ficar acordado numa quase escuridão, numa espera indefinida pela desejada perda de consciência. Durante este tempo suspenso, , ocorre uma recuperação das capacidades perceptuais que são desactivadas ou ignoradas durante o dia. Há o reclamar involuntário de uma sensibilidade ou capacidade de resposta a sensações internas e externas com uma duração não-métrica. Ouve-se os ruídos do trânsito, um cão que ladra, o murmurar de um aparelho de ruído branco, as sirenes da polícia, os canos que rangem, ou sente-se o súbito estremecer dos membros, o sangue que pulsa nas faces, vêem-se com os olhos fechados as flutuações granulares da luminosidade retiniana. Depois, uma sucessão irregular de pontos infundados de foco temporário e atenção inconstante, bem como o aparecimento hesitante de episódios hipnagógicos. O sono coincide com a metabolização do que se ingere durante o dia: medicamentos, álcool, todos os detritos da interface com écrans luminosos; mas também a torrente de ansiedades, medos interrogações, anseios, idealizações da vitória ou da derrota. Trata-se, noite após noite, da monotonia do sono e da ausência dele. É, na sua repetição e exposição, um dos vestígios invictos do quotidiano.
Uma das razões por que há muito as culturas humanas associam o sono à morte é cada um deles, sono e morte, demonstrar a continuidade do mundo na nossa ausência. Porém, a única ausência temporária de quem dorme contém sempre uma ligação ao futuro, a uma possibilidade de renovação, logo de liberdade. É um intervalo ao qual podem chegar, perto da orla da consciência, lampejos de uma vida não vivida, de uma vida adiada. A expectativa noturna do estado insensível do sono profundo é simultaneamente a antecipação de um acordar que pode ter algo imprevisto. Na Europa pós-1815, ao longo de várias décadas de contra-revolução, retrocessos e perdas de esperança, houve artistas e poetas a intuir que o sono não era necessariamente uma evasão ou fuga da história. Percy Bisshe Shelley e Gustave Coubert são dois exemplos de indivíduos que sabiam que o sono era outra forma de tempo histórico - que nele a suspensão e aparente passividade também contemplavam a agitação e inquietude da transformação, essencial para o nascimento de um futuro mais justo e igualitário. Hoje, no século XXI, o desassossego do sono apresenta uma relação mais conturbada com o futuro. Situado algures no limiar entre o social e o natural, o sono assegura a presença no mundo dos padrões faseados e cíclicos essenciais à vida e incompatíveis com o capitalismo. É preciso ler a sua persistência anómala numa relação com a destruição em curso dos processos que sustentam a existência no planeta. Não podendo o capitalismo restringir-se a si próprio, a ideia de preservação ou conservação é uma possibilidade sistémica. É neste contexto que a inércia restauradora do sono contraria a mortalidade de toda a acumulação, financeirização e desperdício que arrasou tudo aquilo que se tinha por comum. Hoje um só sonho suplanta todos os outros: o de um mundo partilhado cujo destino não é terminal, um mundo sem multimilionários, com um futuro que não o barbarismo ou do pós-humano e no qual a história possa assumir formas outras, para lá dos pesadelos reificados de catástrofe. É possível que - em muitos lugres diferentes, em muitos estados distintos, como o devaneio ou o sonhar acordado - as idealizações de um futuro sem capitalismo comecem sonhando o sono. Seriam pistas para o sono como interrupção radical, recusa do impiedoso peso deste presente global, um sono que, no grau mais mundano da experiência quotidiana, possa sempre tentar esboçar aquilo que poderiam ser renovações e começos mais consequentes.»
Jonathan Crary in "24/07 O Capitalismo Tardio e os fins do sono"
24/7 é um livro extremamente perturbador. Perturbador porque desmonta a teia em que a nossa vida se enredou. Do que depreendi da sua tese, que é plasmada nesta obra, é que vivemos tempos comprometidos com uma ideologia anti-pessoa, anti-humanidade onde quem manda é o poder do dinheiro e o fim último a maximização da produtividade e a multiplicação do lucro à custa da privacidade da pessoa e, eventualmente, a privação última do direito inalienável que é o direito ao sono. Privação essa que não parece plausível que possa acontecer embora seja o último grande ensejo do capitalismo, que o considera uma afronta. Afronta porque põe em causa um tempo fora da vigília, um tempo que considera não ser produtivo e, como tal, abominável à luz da razão de ser do capitalismo.
Na parte final desta tese de Jonathan Crary, todavia, o autor e estudioso transmite-nos a possibilidade da humanidade conseguir sair deste emaranhado, desta rede que nos prende, mostrando optimismo no Homem e no desmoronamento desta ideologia económica ultra-liberal, cega que é o capitalismo. E esse desmoronamento passa pelo sono e pelos sonhos de cada um e que a besta não pode impedir.
É a transcrição dessa passagem final do livro que não pude deixar de fazer para memória futura. Porque sonhar é viver...
João Andarilho
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Coninhas |
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24/7 é um livro extremamente perturbador. Perturbador porque desmonta a teia em que a nossa vida se enredou. Do que depreendi da sua tese, que é plasmada nesta obra, é que vivemos tempos comprometidos com uma ideologia anti-pessoa, anti-humanidade onde quem manda é o poder do dinheiro e o fim último a maximização da produtividade e a multiplicação do lucro à custa da privacidade da pessoa e, eventualmente, a privação última do direito inalienável que é o direito ao sono. Privação essa que não parece plausível que possa acontecer embora seja o último grande ensejo do capitalismo, que o considera uma afronta. Afronta porque põe em causa um tempo fora da vigília, um tempo que considera não ser produtivo e, como tal, abominável à luz da razão de ser do capitalismo.
Na parte final desta tese de Jonathan Crary, todavia, o autor e estudioso transmite-nos a possibilidade da humanidade conseguir sair deste emaranhado, desta rede que nos prende, mostrando optimismo no Homem e no desmoronamento desta ideologia económica ultra-liberal, cega que é o capitalismo. E esse desmoronamento passa pelo sono e pelos sonhos de cada um e que a besta não pode impedir.
É a transcrição dessa passagem final do livro que não pude deixar de fazer para memória futura. Porque sonhar é viver...
João Andarilho
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