REAL FÁBRICA DO GELO
Em Setembro de 2019, eu e um grupo de talentosos bttistas da Lourinhã, "Os Pedálentos" decidiu fazer o percurso que dista, desta vila dinossáurica, até ao ponto mais alto da Serra de Montejunto. Se bem o pensámos melhor o fizemos. Porque foi uma fantástica manhã de convívio e por, a final da escalada, ter-me sido dado a conhecer por amigos, veteranos destas paragens, um local mágico mesmo e desconhecido da grande maioria dos portugueses e dos lisboetas em particular.
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Créditos: Maurício Santos |
Foi mandada construir por três sócios, um espanhol, um italiano e um francês, em 1741, segundo conta, Carlos Ribeiro, um dos guias da Real Fábrica do Gelo. A escolha recaiu na Serra de Montejunto devido às condições climatéricas existentes e por ficar localizada perto de Lisboa, a cerca de 50 km. Demorou cerca de 6 anos a ser construída e teve um custo entre 40 e 45 mil cruzados, valor exorbitante para a época. Porém, considerada necessária porque sua altezas reais assim o desejavam e os seus caprichos serem ordens (hoje em dia os caprichos de suas altezas reais que nos (des)governam são muitos, mais caros e variados, por isso é que estamos f***+dos).
Então, segundo Carlos Ribeiro, a unidade estava dividida em dois sectores: o da produção de gelo e a do armazenamento e tinha pormenores de construção muito avançados. Como exemplo, no fundo do enorme silo de armazenamento principal, em pedra (tem 10 m de profundidade e 7 de largura), era colocada uma grelha de madeira sobre um conjunto de pedras salientes, para o gelo que derretia não ficar em contacto com o restante bloco. Além disso, no fundo do silo existia um dreno que escoava essa água para o exterior.
Não é difícil imaginar mas a profissão era extremamente exigente. Dos poços e dos tanques de armazenamento, a água da chuva era enviada para os 44 tanques de congelação, com recurso a um sistema de nora puxado por animais. A água distribuía-se, assim, por gigantescas couvettes a céu aberto, para a natureza tratar de a congelar. O congelamento acontecia de noite quando as temperaturas eram mais baixas. Nessa altura, o guarda da fábrica descia à aldeia de Pragança e, de corneta em riste, acordava os homens que se iriam dedicar ao labor de tirar os enormes blocos de gelo dos tanques, transportá-los às costas e compactá-los nos silos. Tudo isto tinha de acontecer antes do sol nascer. Era um trabalho de escravatura, feito de noite, por homens mal vestidos e mal calçados, com temperaturas baixas e tudo isto para que o reizinho e pares se pudessem deliciar com bebidas geladas. Porque a necessidade era maior e se sobrepunha à dor, estes homens de bem dormiam acordados, vigilantes e à espera do som da corneta. Ainda assim, só os mais rápidos que conseguissem subir a serra é que tinham a "sorte" de ser os escolhidos.
Foi uma actividade que durou meio século e que ainda hoje está imortalizada numa frase que é conhecida pelos mais antigos pragantinos: "quando o silo grande estava cheio de gelo, era o silo do lado (mais pequeno) que estava cheio de moedas de ouro".
O transporte do gelo, então, era uma tarefa bárbara (faz-me lembrar o episódio da construção do Convento de Mafra descrita na obra maior de Saramago - Memorial do Convento). Armazenados durante o Inverno, era em Junho que eram encaminhados para a capital do reino, tarefa monumental ao longo de 50 Kms. A primeira fase acontecia numa primeira zona também chamada fábrica de neve, junto aos silos, em que os homens cortavam o gelo em enormes paralepípedos, envolvendo-os em palha e serapilheira. Ficavam no silo de expedição até seguirem para o dorso dos burros que os levava serra abaixo. Como não existiam estradas, os animais seguiam por carreiros e só no sopé da serra é que encontravam os carros de bois ou carroças em que depois se acomodava o gelo até à vala do Carregado, A partir daqui, os blocos de gelo (envolvidos em palha e serapilheira), seguiam pelo Rio Tejo, durante a noite, até ao Terreiro do Paço, nos barcos da neve, num trajecto que demorava 12 horas. Daqui era levado para a Casa da Neve, num local que, tempos depois, deu lugar ao actual Martinho da Arcada e, a partir daqui, seguia para a Corte, para os cafés e para o Hospital de Todos os Santos, localizado na actual Praça da Figueira.
Destes tempos ainda se encontram alguns vestígios na Baixa Lisboeta, nomeadamente na fachada da antiga pastelaria Pomona (na Rua da Prata nº 113), ou o Café Gelo, no Rossio.
Desta aventura resultou, para além do divertimento e são convívio, um cheirinho de cultura e de aprendizagem e que aqui deixo registado para memória futura.
João Andarilho
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