quinta-feira, 23 de abril de 2020



MOINHOS

Não, não vou escrever sobre o antigo avançado do SLB. São outros moinhos, aqueles com grandes velas e porte magestático que se vêem por muitas paisagens campestres. A mim sempre me fascinou a visão destes mastodontes e o movimento contínuo e giratório das suas velas. É bela a sua visão. A imagem que tenho destes gigantes é que servem para moer o trigo, ponto final. Porém, não é bem assim e quem me abriu o conhecimento para a multiplicidade de possíveis utilizações, foi um extraordinário escritor português contemporâneo de outros grandes escritores lusos do século XIX de nome Ramalho Ortigão.

No livro IX da sua "Geração de 70", que me emprestou o meu especial amigo João Ferreira, escreve-nos sobre a Holanda e é da Holanda que a páginas tantas nos descreve os moinhos holandeses da seguinte forma:
« Zaandam é a metrópole dos moinhos. Há-os por toda a Holanda, mas em nenhuma outra parte reunidos em tão enorme quantidade como aqui.
Abrangem-se cerca de mil numa numa só vista de olhos do golfo do Y ou, do alto do dique a que se abriga a povoação.
Não têm como os moinhos portugueses, quase todos abandonados e em ruínas, o aspecto arqueológico de antigos vestígios de vida pastoral.
Construídos de madeira e repintados em cada ano, parecem todos novos... são em geral pintados de preto até ao eixo da vela, a cúpula verde avivada e branco, ou branca avivada de verde, e o umbigo do eixo escarlate, azul ou doirado.
Assim reunidos e bracejantes a toda a extensão de campina, que aviventam de uma animação fantástica, parece que cada um deles vive de uma animação especial, de uma vida própria. Uns movem-se lentamente como quem se espreguiça num bocejo. Outros giram com mais rapidez, certos, bem compassados, como trabalhadores diligentes e metódicos. Há-os que parecem estremecerem de quando em quando num tique nervoso, ou suspenderem-se em espasmos soluçantes. Alguns redemoinham vertiginosos, frenéticos, em fúria, como doidos... outros jazem lugubremente imóveis como defuntos, amortalhados no véu transparente da neblina, com os dois braços brancos em cruz sobre o burel negro.
Têm, como digo, uma expressão individual, uma fisionomia. Ao pé dos grandes moinhos enormes, colossais, há moinhos mais pequenos, de todos os tamanhos - ia a dizer de todas as idades -, alguns tão pequenos que não trabalham, brincam apenas, uns tão aconchegados ao moinho grande que parece irem pela mão, outros poisando-lhe em cima como se estivessem ao colo.»

m.folha.uol.com.br

Maravilhoso este rendilhado descritivo. Mas continua o nosso ilustre português com a descrição das múltiplas funções dos moinhos que, eu, de todo, por desconhecer, fiquei deslumbrado. Continua assim:

« Empregam-se em toda a espécie de mesteres. Estes são simples moleiros, na acepção primitiva da palavra; moem milho ou moem cevada. Aqueles são lagareiros, e espremem as plantas oleaginosas de que extraem  os óleos industriais e os óleos comestíveis dos Países Baixos. Há-os carpinteiros, há-os droguistas, há-os cordoeiros; serram pranchas, racham lenha, cardam linho, torcem cordas, moem tintas. Há-os também fabricantes: fabricam massas, fabricam goma, fabricam papel, fazem cimentos de construção e fazem mostarda. Há finalmente os moinhos de qualificação científica, os moinhos de profissão liberal, os moinhos engenheiros, personagens técnicos, funcionários oficiais incumbidos da administração hidráulica do país, enxugando as terras paludosas, regando as terras secas, dissecando os pântanos, limpando os canais, mantendo regularmente no solo o nível geral das águas

ducsamsterdam.net
Que me dizem? esta descrição da utilidade do moinho é absolutamente fantástica e deliciosa. Isto passava-se no século XIX. O moinho era o motor da economia holandesa e dele dependia toda a vida de um povo. Certamente que o mesmo não sucedia no nosso país pela afirmação supra, feita pelo escritor acerca dos nossos moinhos. Um dia, seria fantástico voltar a vê-los pelos nossos campos, não transformados em apartamentos de turismo rural, mas sim na sua verdadeira função para que foram concebidos. O ambiente agradecia e os produtores também.

In "Geração de 70" - Ramalho Ortigão

João Andarilho

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