segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A BOLA QUE CHORA


A BOLA QUE CHORA


Com a devida vénia faço a transcrição da crónica de Jorge Valdano publicada no jornal " A Bola ", em homenagem ao seu companheiro de selecção ora falecido, Diego Armando Maradona:



"Aqueles que franzem o rosto ao pensar no último Maradona, com dificuldades para caminhar e para falar, a abraçar Maduro e a fazer da sua vida o que lhe apetecia, fazem bem em abandonar já esta despedida, que abraçará o génio e absolverá o homem. Não vão encontrar uma única censura porque o futebolista não tinha defeitos e o homem foi uma vítima. De quem? De mim ou de você, por exemplo, que seguramente em algum momento o elogiámos sem piedade.

Há algo de perverso numa vida em que se cumprem todos os sonhos e Diego sofreu como ninguém a generosidade do seu destino. Foi a passagem fatal da condição de humano à de mito que o dividiu em dois: de um lado, Diego; do outro, Maradona. Fernando Signorini, o seu preparador físico, um homem sensível e inteligente e, possivelmente, a pessoa que melhor o conheceu, costumava dizer: "Com Diego iria até ao fim do mundo, mas com Maradona nem à esquina". Diego era mais um produto do humilde bairro em que nasceu. Maradona foi superado por uma fama precoce. Essa glorificação desencadeou uma cadeia de consequências, a pior das quais foi a inevitável tentação de subir todos os dias até ao nível da sua lenda. Numa personalidade aditiva como a sua, isso foi fatal.

Se o futebol é universal, Maradona também o é, porque Maradona e futebol já são sinónimos. Mas ao mesmo tempo era inequivocamente argentino, o que explica o poder sentimental que sempre teve no nosso país e que o tornou impune. Um homem que, pela sua condição de génio, deixou de ter limites desde a adolescência e que, pela sua origem, cresceu com orgulho de classe. Por essa razão, e também pela sua força representativa, com Maradona os pobres ganharam aos ricos, de tal maneira que a adesão incondicional que vinha de baixo foi proporcional à desconfiança que vinha de cima. Os ricos odeiam perder. Mas até os seus piores inimigos tiveram de tirar o chapéu perante o seu descomunal talento futebolístico. Não havia outro remédio.

Com pouco mais de 15 anos começou a concorrer para deus do futebol. Para mais, fê-lo num país que o acolheu como um messias sentimental, porque o futebol, na Argentina, é um jogo que só chega à mente depois de passar pelo coração. O fascínio pela arte de bairro que Diego levou aos estádios transcendeu a clubite. Não importava a camisola que levava vestida, era um génio, era argentino e isso bastava para soltar o orgulho.

Como foi a sua obra que o tornou grande, e não a sua vida, comecemos por aí. Há umas primeiras imagens de Diego a dominar a bola num cenário humilde, concentrado como um burocrata e feliz como um menino que monta e desmonta a bola, o brinquedo da sua vida. Primeiro o pé esquerdo e depois a cabeça não a deixam cair, no que parece ser uma amável discussão com a bola que às tantas se revolta. Quase escapa, mas Diego não deixa, subjuga-a, como se a estivesse a domar, mais do que a dominar. Tem pouco mais de 10 anos e já aponta para a virtuosidade, mesmo que a bola e Diego ainda estejam a conhecer-se. 

O idílio do domador com a bola cresceu com o tempo até chegar a um ponto em que ver Diego a manejá-la era um espectáculo à parte. Quando treinava, e só para dar um exemplo, chutava-a até ao céu com um efeito que só ele entendia e, enquanto a bola viajava, Diego fazia exercícios como se não se lembrasse do que havia deixado a pairar no ar. Mas quando a bola, já a cair, chegava ao seu nível, voltava a olhar para ela como se estivesse surpreendido e devolvia-a ao céu com outro efeito para a esquecer durante mais um pouco. Sabia exactamente o momento e o lugar do reencontro. O resto devia-se à sua precisão milimétrica. O seu infinito repertório era complexo.

Estávamos em Berlim à espera de um jogo pela Argentina e Bilardo insistia na necessidade de apurar a técnica e, como as obsessões nunca são pequenas, repetia sem parar que um jogador argentino tinha de viver com a bola nos pés. "De manhã, à tarde e à noite, sempre com a bola". Dias a repetir o mesmo. Assim, na hora da refeição Diego saiu do quarto a dominar uma bola, apanhou o elevador enquanto continuava a dar toques, chegou à sala de jantar, sentou-se e a bola continuou sem cair enquanto debicava o pão. Bilardo entrou, viu-o e com um sorriso de orelha a orelha encheu-se de razão: "Estão a ver? Por isso ele é o Maradona". Este episódio, que sempre recordei com um sorriso, hoje chega envolto numa inevitável tristeza.

O virtuosismo que alcançou com a bola, e que todos admiramos, levou-o depois à concepção de jogo até fazer da perfeição um hábito. Com a visão periférica de uma coruja, com a nobre elegância de um mago para iludir e a potência de um 4x4 para escapar, tudo associado a passes perfeitos, remates letais e uma personalidade napoleónica para enfrentar as grandes batalhas...

Em nenhum outro lugar foi tão feliz como dentro de um campo de futebol. Aí tinha um encontro com o seu amor, a bola, mas também um domínio cénico espectacular, como se não se sentisse parte de uma equipa, mas único. Como um roqueiro que leva a multidão à loucura, em vez de um futebolista. A segurança que tinha com a bola e a superioridade abusiva do seu jogo foram sendo incorporadas na sua mentalidade até que chegou o dia fatídico em que a personagem superou a pessoa. Era diferente, sentia-se diferente e agia de forma diferente.

Em algum momento da reflexão anterior escaparam-se-me dois conceitos que, mal interpretados, são injuriosos e convém esclarecer. O primeiro, quando disse que era mais cantor do que futebolista. Essa imagem utilizei-a para exaltar o solista, mas nunca para rebaixar o futebolista. Foi e morreu com alma de jogador de futebol. O segundo esclarecimento é sobre a sua condição de solista. Sobressaía da equipa com um brilho incomparável, mas não só se sentia parte da equipa como era muito generoso com os seus companheiros. A felicidade que sentia dentro de um campo de futebol convertia-o em solidário, valente, hábil até ao exibicionismo e competitivo como um esfomeado. Por essa razão, estou convencido de que, só por ter pisado gloriosamente esses 100x70 metros, a vida valeu a pena.

Como esta recordação também pretende chamar a atenção sobre a exagerada vida de Diego, há que chegar a Nápoles, onde, em oito anos intensos como um século, o seu futebol atingiu níveis desconhecidos para o clube e gloriosos para si próprio, mas onde a sua vida descarrilou. A alegria e a dor, a luz e a escuridão, o pico mais alto e o poço mais profundo. A saúde, que era o futebol, e a doença que lhe contagiou a vida. Ninguém que eu conheça fez uma travessia tão longa e sinuosa.

Nas duas extremidades (a do campo e a da vida) habitou um super-homem. No campo porque, rodeado de jogadores normais, foi mais forte que os árbitros, que o poder do norte, que o super Milan de Sacchi e que a pobre história do Nápoles. Era ele contra o mundo. E ganhava ele. No Mundial de 1986, em que jogou em estado de graça, a sua genialidade conheceu o ponto mais alto no dia em que venceu a Inglaterra. Como Homero fez com o seu Ulisses, convém não fazer descrições externas e reservar para Diego os mesmos atributos que para o herói da Odisseia: "Sagaz", "manhoso", "certeiro" e "de muitos truques". O futebol de Diego era feito de beleza, de criatividade, de orgulho, virilidade e, naquela tarde frente à Inglaterra, de enorme 'argentinidade', em proporções idênticas de vivacidade e habilidade. Diego marcou um golo estratosférico e outro batoteiro. Aqui está o melhor exemplo dessa frase que usamos em ocasiões menos oportunas do que esta: estava acima do bem e do mal.

Também na vida habitou um super-homem porque, embora Jesus Cristo tenha ressuscitado ao terceiro dia, o que não é fácil, Maradona ressuscitou pelo menos três vezes, o que também não é fácil. Era tão forte fisicamente como era grande o seu génio futebolístico. Na verdade, todos os seus excessos foram um atentado contra o desporto e, ainda assim, não mancharam o seu descomunal talento, embora por vezes jogasse em condições alarmantes.

Na admiração e na dor cabem diferentes tipos de emoção. Hoje até a bola, o brinquedo mais comunitário que existe, se sentirá mais sozinha e chorará de forma desconsolada o seu dono. Todos os que amamos o futebol autêntico choramos com ela por Maradona. E os que o conhecemos choraremos ainda mais por aquele Diego que, nos últimos tempos, quase tinha desaparecido debaixo do peso da sua lenda e da sua vida de excessos. Adeus, grande capitão".




"Aqueles que franzem o rosto ao pensar no último Maradona, com dificuldades para caminhar e para falar, a abraçar Maduro e a fazer da sua vida o que lhe apetecia, fazem bem em abandonar já esta despedida, que abraçará o génio e absolverá o homem. Não vão encontrar uma única censura porque o futebolista não tinha defeitos e o homem foi uma vítima. De quem? De mim ou de você, por exemplo, que seguramente em algum momento o elogiámos sem piedade.

Há algo de perverso numa vida em que se cumprem todos os sonhos e Diego sofreu como ninguém a generosidade do seu destino. Foi a passagem fatal da condição de humano à de mito que o dividiu em dois: de um lado, Diego; do outro, Maradona. Fernando Signorini, o seu preparador físico, um homem sensível e inteligente e, possivelmente, a pessoa que melhor o conheceu, costumava dizer: "Com Diego iria até ao fim do mundo, mas com Maradona nem à esquina". Diego era mais um produto do humilde bairro em que nasceu. Maradona foi superado por uma fama precoce. Essa glorificação desencadeou uma cadeia de consequências, a pior das quais foi a inevitável tentação de subir todos os dias até ao nível da sua lenda. Numa personalidade aditiva como a sua, isso foi fatal.

Se o futebol é universal, Maradona também o é, porque Maradona e futebol já são sinónimos. Mas ao mesmo tempo era inequivocamente argentino, o que explica o poder sentimental que sempre teve no nosso país e que o tornou impune. Um homem que, pela sua condição de génio, deixou de ter limites desde a adolescência e que, pela sua origem, cresceu com orgulho de classe. Por essa razão, e também pela sua força representativa, com Maradona os pobres ganharam aos ricos, de tal maneira que a adesão incondicional que vinha de baixo foi proporcional à desconfiança que vinha de cima. Os ricos odeiam perder. Mas até os seus piores inimigos tiveram de tirar o chapéu perante o seu descomunal talento futebolístico. Não havia outro remédio.

Com pouco mais de 15 anos começou a concorrer para deus do futebol. Para mais, fê-lo num país que o acolheu como um messias sentimental, porque o futebol, na Argentina, é um jogo que só chega à mente depois de passar pelo coração. O fascínio pela arte de bairro que Diego levou aos estádios transcendeu a clubite. Não importava a camisola que levava vestida, era um génio, era argentino e isso bastava para soltar o orgulho.

Como foi a sua obra que o tornou grande, e não a sua vida, comecemos por aí. Há umas primeiras imagens de Diego a dominar a bola num cenário humilde, concentrado como um burocrata e feliz como um menino que monta e desmonta a bola, o brinquedo da sua vida. Primeiro o pé esquerdo e depois a cabeça não a deixam cair, no que parece ser uma amável discussão com a bola que às tantas se revolta. Quase escapa, mas Diego não deixa, subjuga-a, como se a estivesse a domar, mais do que a dominar. Tem pouco mais de 10 anos e já aponta para a virtuosidade, mesmo que a bola e Diego ainda estejam a conhecer-se. 

O idílio do domador com a bola cresceu com o tempo até chegar a um ponto em que ver Diego a manejá-la era um espectáculo à parte. Quando treinava, e só para dar um exemplo, chutava-a até ao céu com um efeito que só ele entendia e, enquanto a bola viajava, Diego fazia exercícios como se não se lembrasse do que havia deixado a pairar no ar. Mas quando a bola, já a cair, chegava ao seu nível, voltava a olhar para ela como se estivesse surpreendido e devolvia-a ao céu com outro efeito para a esquecer durante mais um pouco. Sabia exactamente o momento e o lugar do reencontro. O resto devia-se à sua precisão milimétrica. O seu infinito repertório era complexo.

Estávamos em Berlim à espera de um jogo pela Argentina e Bilardo insistia na necessidade de apurar a técnica e, como as obsessões nunca são pequenas, repetia sem parar que um jogador argentino tinha de viver com a bola nos pés. "De manhã, à tarde e à noite, sempre com a bola". Dias a repetir o mesmo. Assim, na hora da refeição Diego saiu do quarto a dominar uma bola, apanhou o elevador enquanto continuava a dar toques, chegou à sala de jantar, sentou-se e a bola continuou sem cair enquanto debicava o pão. Bilardo entrou, viu-o e com um sorriso de orelha a orelha encheu-se de razão: "Estão a ver? Por isso ele é o Maradona". Este episódio, que sempre recordei com um sorriso, hoje chega envolto numa inevitável tristeza.

O virtuosismo que alcançou com a bola, e que todos admiramos, levou-o depois à concepção de jogo até fazer da perfeição um hábito. Com a visão periférica de uma coruja, com a nobre elegância de um mago para iludir e a potência de um 4x4 para escapar, tudo associado a passes perfeitos, remates letais e uma personalidade napoleónica para enfrentar as grandes batalhas...

Em nenhum outro lugar foi tão feliz como dentro de um campo de futebol. Aí tinha um encontro com o seu amor, a bola, mas também um domínio cénico espectacular, como se não se sentisse parte de uma equipa, mas único. Como um roqueiro que leva a multidão à loucura, em vez de um futebolista. A segurança que tinha com a bola e a superioridade abusiva do seu jogo foram sendo incorporadas na sua mentalidade até que chegou o dia fatídico em que a personagem superou a pessoa. Era diferente, sentia-se diferente e agia de forma diferente.

Em algum momento da reflexão anterior escaparam-se-me dois conceitos que, mal interpretados, são injuriosos e convém esclarecer. O primeiro, quando disse que era mais cantor do que futebolista. Essa imagem utilizei-a para exaltar o solista, mas nunca para rebaixar o futebolista. Foi e morreu com alma de jogador de futebol. O segundo esclarecimento é sobre a sua condição de solista. Sobressaía da equipa com um brilho incomparável, mas não só se sentia parte da equipa como era muito generoso com os seus companheiros. A felicidade que sentia dentro de um campo de futebol convertia-o em solidário, valente, hábil até ao exibicionismo e competitivo como um esfomeado. Por essa razão, estou convencido de que, só por ter pisado gloriosamente esses 100x70 metros, a vida valeu a pena.

Como esta recordação também pretende chamar a atenção sobre a exagerada vida de Diego, há que chegar a Nápoles, onde, em oito anos intensos como um século, o seu futebol atingiu níveis desconhecidos para o clube e gloriosos para si próprio, mas onde a sua vida descarrilou. A alegria e a dor, a luz e a escuridão, o pico mais alto e o poço mais profundo. A saúde, que era o futebol, e a doença que lhe contagiou a vida. Ninguém que eu conheça fez uma travessia tão longa e sinuosa.

Nas duas extremidades (a do campo e a da vida) habitou um super-homem. No campo porque, rodeado de jogadores normais, foi mais forte que os árbitros, que o poder do norte, que o super Milan de Sacchi e que a pobre história do Nápoles. Era ele contra o mundo. E ganhava ele. No Mundial de 1986, em que jogou em estado de graça, a sua genialidade conheceu o ponto mais alto no dia em que venceu a Inglaterra. Como Homero fez com o seu Ulisses, convém não fazer descrições externas e reservar para Diego os mesmos atributos que para o herói da Odisseia: "Sagaz", "manhoso", "certeiro" e "de muitos truques". O futebol de Diego era feito de beleza, de criatividade, de orgulho, virilidade e, naquela tarde frente à Inglaterra, de enorme 'argentinidade', em proporções idênticas de vivacidade e habilidade. Diego marcou um golo estratosférico e outro batoteiro. Aqui está o melhor exemplo dessa frase que usamos em ocasiões menos oportunas do que esta: estava acima do bem e do mal.

Também na vida habitou um super-homem porque, embora Jesus Cristo tenha ressuscitado ao terceiro dia, o que não é fácil, Maradona ressuscitou pelo menos três vezes, o que também não é fácil. Era tão forte fisicamente como era grande o seu génio futebolístico. Na verdade, todos os seus excessos foram um atentado contra o desporto e, ainda assim, não mancharam o seu descomunal talento, embora por vezes jogasse em condições alarmantes.

Na admiração e na dor cabem diferentes tipos de emoção. Hoje até a bola, o brinquedo mais comunitário que existe, se sentirá mais sozinha e chorará de forma desconsolada o seu dono. Todos os que amamos o futebol autêntico choramos com ela por Maradona. E os que o conhecemos choraremos ainda mais por aquele Diego que, nos últimos tempos, quase tinha desaparecido debaixo do peso da sua lenda e da sua vida de excessos. Adeus, grande capitão".

Jorge Valdano

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