terça-feira, 15 de janeiro de 2019




FARPAS


Ontem mesmo dei um salto à Gulbenkian para ouvir dois bons actores, José Pedro Gomes e Tiago Rodrigues lerem e encenarem alguns excertos de "As Farpas", com que Eça, nesse explícito porém fantástico folhetim partilhado com Ramalho Ortigão, caricaturou a sociedade portuguesa de então.


Irónico em abono da verdade é que a audiência ria mas a crítica era-lhe dirigida. A pobre não compreendia ou fingia não compreender. Eu chorava de raiva, mas baixinho. A sociedade não mudou, continuamos a ser o mesmo povo mole, dócil e temente, beato.  Nada mudou ao longo dos séculos. Afinal do que gostamos mesmo é de uma boa ditadura.



« Todos os jornais, na época das eleições, têm os seus candidatos predilectos. Os jornais franceses apresentam os nomes deles, à adesão pública, no alto da página, num tipo enorme; os jornais portugueses diluem-nos numa prosa fluída nos seus artigos de fundo.
Nós também temos dois candidatos queridos.
São:

O dr. João das Regras.
O condestável Nuno Álvares Pereira.

São estes dois cavalheiros, - cidadãos! - a expressão gloriosa da sua pátria: um é o seu pensamento jurídico, outro o seu valor heróico. Qual será o cidadão liberal e inteligente que recuse o seu voto a estes dois homens históricos? Valerá mais o sr. José de Morais, ou o Sr. Coelho do Amaral? E depois quem como o dr. João das Regras velaria pelos foros populares? Quem como o condestável saberia manter a independência da pátria? - à urna, cidadãos!
Podem apenas pôr-nos uma objecção,  - pequena por si, mas que talvez influa nos ânimos timoratos - é que o doutor e o condestável morreram há quatro séculos!
Pois bem, nós afirmamos que nada importa isso, porque eles estão em identidade de circunstâncias com a grande parte dos candidatos que se apresentam por esses círculos, de Norte a Sul do país! Sim, todos esses senhores - estão tão mortos como João das Regras, como D. Nuno Álvares Pereira!
Debalde passeiam! debalde falam! Estão mortos, viver para sentir fisicamente é simples - basta que o sangue circule, que o alimento se digira, que os pulmões trabalhem. Mas viver para legislar e pensar, é mais complexo - é necessário que a inteligência, a imaginação, a consciência trabalhem, actuem, estejam em vigor. Ora grande parte dos senhores candidatos, têm aquela porção do seu ser tão morta como o dr. Regras, ou o condestável Pereira.
Com efeito, no sentido de legislar, organizar, dirigir um país - viver é ser do seu tempo, estar no seu momento histórico, estar na corrente de ideias da sua época, ajudar a criação social do seu século, estar na direcção do progresso, e na comunhão das ideias novas. Ser legitimista de 1820, ou cartista de 36, ou cabralista de 45, ou regenerador se 51 - não é viver, é recordar-se. Ora por este lado quem sabe também se os mortos se recordarão?
Por consequência, como a maioria dos candidatos, estão mortos e embalsamados no seu próprio corpo - estão na categoria em que se acham os defuntos srs. Regras e Álvares Pereira.
Propomos pois:
O doutor!
O condestável!

Podem todavia observar-nos que:
Sendo verdade (como é) que os senhores deputados estão mortos no seu espírito - é também verdade que estão vivos no seu corpo - que podem dizer presentes! na chamada - e que nesta condição não está o doutor e o condestável, os quais sendo um punhado hipotético de pó não podem ter a pretensão, verdadeiramente tirânica, de dizerem presentes! - como o sr. Melício, ou o sr. Carlos Bento - que são de carne esses!
Pois bem! Uma vez que é necessário um vulto, um corpo, uma pouca de matéria, para que o srs. secretários os possam tomar como personalidades - propomos:
A estátua de Camões.
A estátua de João de Barros.
Não nos dirão decerto que estes não tenham vulto, medida, forma e peso! À urna pois!
Mas podem fazer-nos sentir:
Que se estes últimos cavalheiros têm a condição corpórea, lhes falta a condição vocal - aquela grande condição de deputado que consiste em dizer:
- Apoiado!
Nesse caso, como nós não temos a pretensão de provar que o bronze e a pedra sejam de uma extrema facilidade de locução, propomos:
Dois papagaios à escolha do sr. marquês d´Ávila!»

"As Farpas"




João Satírico




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