A CULPA É VOSSA!
" Mãe... eu quero ficar sozinho! Mãe, eu não quero pensar mais, mãe, eu quero morrer, mãe! Eu quero desnascer, ir-me embora sem sequer ter que me ir embora! Mãe, por favor... tudo menos a casa em vez de mim, outro maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me encontrar e me encontrar fugindo. De quê, mãe? Diz! São coisas que se me perguntem... não pode haver razão para tanto sofrimento. E se inventássemos o mar de volta e se inventássemos partir para regressar, partir e aí, nessa viagem, ressuscitar da morte às arrecuas que me deste. Partida para ganhar, partida de acordar, abrir os olhos numa ânsia colectiva de tudo fecundar, terra, mar, mãe. Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto. Lembrar, note a note, o canto das sereias, lembrar o Depois do Adeus e o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal, lembrar cada lágrima, cada abraço, cada morte, cada traição, partir aqui com a ciência toda do passado, partir aqui, para ficar... Assim mesmo como intervim um dia a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o azul dos operários da Lisnave a desfilar gritando ódio apenas ao vazio, exército de amor e capacetes, assim mesmo na Praça de Londres, o soldado lhes falou: - olá camaradas, somos trabalhadores, eles não conseguiram fazer-nos esquecer, aqui está a minha arma para vos servir.
Assim mesmo por trás das colinas onde o verde está à espera, se levantam antiquíssimos rumores, as festas e os suores, os bombos de Lava Colhos. Assim mesmo senti um dia, a chorar de alegria e esperança precoce e intranquila o bater inexorável dos corações produtores, os tambores. De quem é o Carvalhal? É nosso! Assim, te quero cantar! Mar antigo a que regresso. Neste cais está arrimado o barco que sonho em que voltei, neste cais eu encontrei a margem do outro lado, Grândola Vila Morena. Diz lá? Valeu a pena a travessia? Valeu pois! Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe, no fundo deste mar encontrarei os tesouros recuperados de mim, que estou a chegar do lado de lá para ir convosco, tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos, o meu canto e a palavra, o meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram. A minha arte é estar aqui convosco e ser-vos alimento e companhia na viagem para estar aqui de vez. Sou português, pequeno-burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro. Faltam-me dentes, sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto. Contai com isto de mim para cantar e para o resto.
(Fevereiro de 1979)
José Mário Branco - FMI